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A COBRANÇA DA COFINS (CONTRIBUIÇÃO PARA O FINANCIAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL) SOBRE AS SOCIEDADES CIVIS
A cobrança da COFINS sobre as sociedades civis prestadoras de serviço regulamentado Carlos Augusto Jeniêr Grupo de Estudos Tributários (GET-ES) 01.03.2000.
1. Prefácio:
“Os Impostos são pagos com o suor de cada homem que trabalha. Se tais impostos são excessivos, ficam refletidos nas fábricas paradas, nas fazendas vendidas para saldar tributos e nas horas de pessoas famintas vagando pelas ruas e procurando emprego em vão.” (Franklin Delano Roosevelt).
O Estado, conforme bem firmado pela doutrina filosófica constituída pelos contratualistas clássicos dos Sécs. XVII e XVIII, fora constituído diante da necessidade do “homem natural” em, de forma eficaz, garantir a própria sobrevivência, reunindo-se em sociedade e abrindo mão de parte de sua liberdade individual em favor de um ente supra individual, que estaria, a partir de então, encarregado em promover o que se passou a chamar de bem comum, podendo ser resumido no reflexo da razão natural da vida em sociedade, que fora inclusive contemplado pelo texto da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” de 1793, que preceituou que:
“O fim da sociedade é a felicidade comum. O Governo é instruído para garantir ao homem o gozo destes direitos naturais e imprescindíveis” e que “estes direitos são a igualdade, a liberdade e a propriedade.”
Dessa forma, a existência do Estado encontra-se desde a sua gênese jungida à idéia de promoção do interesse social, que se deve fazer mediante o que se denomina atividade estatal, que é o conjunto de atos praticados pelos órgãos investidos nas funções públicas (Executivo, Legislativo e Judiciário) em conformidade plena com aquele interesse tido como comum à coletividade, cumprindo de forma integral e fiel o disposto no “instrumento social de outorga de poderes”, que em nosso sistema político-jurídico é representado pelo texto da Constituição Federal.
A Constituição Federal, por esse motivo, constituiu-se em importante instrumento de controle da atividade do ente público, que, como se verificou ao longo de toda a história de sua existência, alimenta a tendência, via de regra, de considerar-se um fim em si mesmo, desrespeitando muitas vezes as limitações traçadas pelo texto magno, chegando-se ao ponto absurdo de ser considerado – aquele mesmo Estado que deveria garantir o bem comum – como verdadeiro inimigo da sociedade, destruindo a confiança depositada pelos cidadãos, refletindo, inexoravelmente, na completa falência moral da entidade. Essa visão apresenta-se brilhantemente destacada pelo prof. Renato Ferrari em sua obra “Em Busca da Paz Tributária” ao tratar com toda a propriedade e atualidade do tema: “Dever moral do Estado”:
“Esta conformidade (com o interesse coletivo) abrange ações e vedações. Entre as primeiras, o Estado e seus agentes são obrigados a atuar de boa-fé, dando ao seu procedimento lisura e transparência, sem artifícios, ardis ou outros meios de engano e sem dolo, coação, simulação ou outros vícios fraudatórios da legitimidade. Entre as segundas, é vedado transformar o Estado em fim de si mesmo, como se fora um ser independente que, em vez de colocar-se na sua obrigatória posição de mandatário fiel, considera a sociedade como fonte de abastecimento de ambições políticas e de apetites econômicos; estes, no seu crescendo, acabam por conflitar com a sociedade e fazer do Estado não mais o representante político, mas o adversário da Nação.” (1).
Essas atividades desleais, ilícitas e imorais praticadas pelos entes públicos sempre tiveram sensível notoriedade no campo da tributação, onde o Estado, muitas vezes desrespeitando os princípios constitucionais tributários, tenta impor cobranças de tributos flagrantemente ilegais, abusivos e inconstitucionais, instituídos de forma espúria, dos quais somente pela via judicial é que se pode ver livre o contribuinte, e somente pelos tortuosos caminhos da repetição de indébito pode reaver o valor pago indevidamente.
Essa é a realidade atual do sistema tributário brasileiro: utilizando-se constantemente da ilegalidade, o Estado institui cobranças abusivas, auferindo receita, pelos meios coercitivos de que dispõe, sem a observância dos limites traçados pelo ordenamento jurídico-constitucional, causando o verdadeiro caos social e a completa insegurança jurídica.
Cumpre lembrar que essa mesma excessiva e ilegal carga tributária marcou a história mundial com diversas revoltas e conflitos armados que sempre tiveram por finalidade conter as abusividades perpetradas pelo Estado, especialmente, no caso brasileiro, no transcurso do séc. XVIII e XIX, onde movimentos como a Inconfidência Mineira de 1789, que teve como um dos principais motivos a instituição derrama (2), e a Insurreição Pernambucana de 1817, causada pelo aumento da carga tributária com o fim de cobrir as despesas decorrentes da vinda do Rei D. João VI e de toda a corte portuguesa para o Brasil em 1808 (3), além é claro de muitas outras como “A Guerra dos Farrapos de 1835”, tiveram importante papel na luta da sociedade contra o abuso tributário.
Nos nossos dias, entretanto, apesar dessa prática nociva contra o bem estar social e a moralidade pública ainda apresentar-se de forma tão proeminente, felizmente, contemplando a máxima germânica: “ainda há juízes em Berlim” (4), o Poder Judiciário, através da arguição judicial das ilegalidades constantes nos tributos criados, ora pelo Legislativo e ora até mesmo pelo próprio Executivo, tem declarado a inexistência da obrigatoriedade em recolhê-los, livrando o cidadão da pesada carga tributária que lhe é imposta ilegalmente.
A luta pelo direito é uma chama que nunca se apaga, é o combate incessante pela liberdade, que somente pode chegar ao fim de duas formas: ou pelo triunfo da justiça e da moralidade ou pela desistência dos combatentes. A esperança, entretanto, leva-nos a crer que a Justiça será sempre superior ao desânimo e que seu triunfo será o inevitável resultado da paz social tanto almejada. Esse é, e sempre será, o objeto maior de nossa luta.
2. Escorço Histórico:
A promulgação da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988 trouxe em seu bojo um dos melhores sistemas formais tributários da atualidade, elencando e fixando de forma clara as competências de cada ente federado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e as respectivas espécies tributárias que poderiam ser instituídas por cada um deles, reservando à União Federal a competência, mediante lei complementar, para a instituição de contribuições voltadas ao financiamento da seguridade social, nos termos do seu art. 195.
Dentro dessa sistemática traçada pelo texto máximo, editou-se, em 30 de dezembro de 1991, a Lei Complementar nº 70/91 que dispunha sobre a instituição da chamada “Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social”, apelidada de COFINS, e que, conforme seu art. 2º, seria calculada aplicando-se o percentual de 2% (dois por cento) sobre o faturamento mensal das pessoas jurídicas e suas equiparadas pela legislação do imposto de renda, obtido pela venda de mercadorias ou pela prestação de serviços.
Naquele mesmo diploma legal, em seu art. 6º, o legislador pátrio instituiu as isenções à referida contribuição, excluindo do critério pessoal de incidência da norma tributária as seguintes figuras:
Art. 6°. “São isentas da contribuição:
I – as sociedades cooperativas que observarem ao disposto na legislação específica, quanto aos atos cooperativos próprios de suas finalidades;
II – as sociedades civis de que trata o art. 1° do Decreto-Lei n° 2.397, de 21 de dezembro de 1987;
III – as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.”
Por sua vez, o art. 1º do Decreto-lei nº 2.397/87, mencionado no corpo do dispositivo legal, dispunha que:
Art. 1º. “A partir do exercício financeiro de 1989, não incidirá o Imposto de Renda das pessoas jurídicas sobre o lucro apurado, no encerramento de cada período-base, pelas sociedades civis de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão legalmente regulamentada, registradas no Registro Civil das pessoas Jurídicas e constituídas exclusivamente por pessoas físicas domiciliadas no País.”
Destarte, desde a instituição dessa exação as sociedades civis prestadoras de serviços devidamente regulamentados estavam dispensadas do pagamento da COFINS, em face da exclusão expressa do critério pessoal da regra matriz de incidência, não sendo portanto possível a sua caracterização como sujeitos passivos da relação tributária.
Entretanto, esse entendimento lógico e óbvio do constante no texto legal fora abatido, em meados de 1994, pelo “Parecer Normativo nº 3/94” (5) do ilustre Coordenador Geral do Sistema de Tributação, sustentando que somente as sociedades civis prestadoras de serviços profissionais legalmente regulamentados que não optassem por um dos regimes de tributação pelo imposto de renda previstos no art. 2º da Lei 8.541/92, é que estariam enquadradas nas hipóteses isentivas constantes no art. 6º, II da LC-70/91.
Fundada naquele entendimento, a administração tributária passou a crer ser devida a contribuição das sociedades civis que optassem por um dos regimes de tributação do IR (Lucro Real ou presumido).
Ocorre, entretanto, que, reconhecendo a impossibilidade da cobrança do indigitado tributo pela via do Parecer Normativo, o legislativo federal, em 27 de dezembro de 1996, fez editar a Lei 9.430/96 que inseriu uma série de mudanças no sistema tributário pátrio, dispondo, em seu art. 56, sobre a obrigatoriedade de recolhimento da COFINS pelas sociedades civis prestadoras de serviços, da seguinte forma:
Art. 56. “As sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente regulamentada passam a contribuir para a seguridade social com base na receita bruta da prestação de serviços, observadas as normas da Lei Complementar nº 70, de 30 de dezembro de 1991.
Parágrafo único. Para efeito da incidência da contribuição de que trata este artigo, serão consideradas as receitas auferidas a partir do mês de abril de 1997.”
A partir de então, supostamente, haveria o “dever legal” (decorrente de ato normativo oriundo do poder legislativo) de recolhimento da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social pelas sociedades civis prestadoras de serviço legalmente regulamentado.
Entretanto, tanto na fase anterior à edição da Lei 9.430/96 quanto após a sua publicação, constatam-se uma série de impossibilidades de exigência da referida Contribuição, não sendo legítima portanto a sua cobrança pelas autoridades fiscais, conforme passamos a demonstrar.
3. Da Impossibilidade da Exigência do Tributo pela via do Parecer Normativo 03/94:
Conforme ressaltamos linhas acima, a Lei Complementar nº 70/91, em seu art. 6º, II concedia a isenção às sociedades civis prestadoras de serviço estabelecidas em conformidade com o disposto no art. 1º do Decreto-lei 2.397/87.
Entretanto, por meio de interpretação viciada dos referidos dispositivos legais pelo ilustre Coordenado Geral de Tributação em seu Parecer Normativo 03/94, o fisco passou a exigir a COFINS das sociedades civis que optassem por um dos sistemas de tributação do Imposto de Renda e Proventos de Qualquer Natureza previstos no art. 2º da Lei 8.541/92 (Lucro Real ou presumido).
Esse entendimento entretanto não prosperou, sofrendo graves críticas doutrinárias e reiteradas decisões nos tribunais reconhecendo a ilegalidade da exigência de tributo por meio do Parecer do douto Coordenador que, sendo ato normativo secundário, não seria hábil para fundamentar a pretensa cobrança, pois possui por finalidade, conforme se depreende do disposto no art. 100, I do CTN, a complementação das leis, tratados, convenções internacionais e decretos, senão vejamos:
Art. 100. “São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos:
I – os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas.”
Destarte, o referido ato administrativo não poderia inovar no universo jurídico, revogando a isenção concedida em sede de Lei Complementar , devendo somente se ater aos termos de sua competência.
O mestre constitucionalista José Afonso da Silva, ao tratar da limitação do objeto de legiferação de atos normativos secundários, ensina que:
“O poder regulamentar não é poder legislativo, por conseguinte não pode criar normatividade que inove a ordenação jurídica. Seus limites naturais situam-se no âmbito da competência executiva e administrativa, onde se insere. Ultrapassar estes limites importa em abuso de poder, em usurpação de competências, tornando írrito o regulamento dele proveniente.” (6).
Dessa forma, o condicionamento imposto para a utilização da isenção prevista no art. 6º da Lei Complementar nº 70/91 pela simples edição de um Parecer Normativo, ataca diretamente o princípio da legalidade, contemplado de forma universal pelo ordenamento jurídico pátrio, impondo ao contribuinte, pela via diversa da lei, a obrigatoriedade de pagamento da COFINS, estando portanto em desacordo com o disposto no art. 150, I da Lex Legum que impõe a vedação aos Entes Federados e à União à exigência ou majoração de tributo sem lei que o estabeleça.
Esse entendimento, consagrado pela doutrina e pela jurisprudência pátria, foi objeto de recentíssimo acórdão do egrégio TRF da 4ª Região, publicado no DJU de 20/10/99, que por unanimidade, pronunciou-se pela ilegalidade da exigência, in verbis:
“COFINS – ISENÇÃO – SOCIEDADE CIVIL DE PROFISSIONAIS – COBRANÇA COM BASE EM PARECER NORMATIVO – ILEGALIDADE “Tributário. COFINS. Isenção. Sociedade Civil. Art. 1º do Decreto-lei nº 2.397/87. Cobrança com base em parecer normativo.
1- As sociedade civis de prestação de serviços profissionais, de que trata o art. 1º do Decreto-lei nº 2.397/87, independentemente do regime de tributação do imposto de renda, beneficiam-se da isenção do recolhimento da COFINS (art. 6º, II da Lei Complementar nº 70/91). 2- Mero ato normativo não pode revogar isenção legalmente instituída.” (Ac un da 2ª T do TRF da 4ª R – AC 97.04.45837-1/RS – Rel. Juiz Élcio Pinheiro de Castro – j 02.09.99 – Aptes.: Sociedade de Advogados Trabalhistas e outro; Apda.: União Federal/Fazenda Nacional – DJU 2 20.10.99, p. 346 – ementa oficial).
O C. STJ, ao tratar da necessidade de comprovação da isenção do imposto de renda para a concessão da isenção da COFINS, pronunciou-se também de forma clara:
“COFINS – ISENÇÃO – SOCIEDADE DE PROFISSIONAIS – PROVA ‘COFINS – Isenção – Imposto de renda – Sociedades civis. As Sociedades civis de que trata o artigo 1º do Decreto-lei nº 2.397/87, para beneficiarem-se da isenção da COFINS, não tem de provar serem também isentas do imposto de renda. Recurso provido.” (Ac un da 1ª T do STJ – Resp 144.851-RS – Rel. Min. Garcia Vieira – j 03.03.98 – Rectes.: Revisora Fiscal e Contabilidade de Empresas S/C Ltda. e outros; Recda.: Fazenda Nacional – DJU 1 27.04.98, p. 86 – ementa oficial)
Do voto do relator, Dr. Garcia Vieira, que pela clareza e propriedade com que tratou a matéria não poderia ser olvidado no presente estudo, destacamos o seguinte trecho:
“Se estas sociedades perdem a isenção do imposto de renda ao optarem pela tributação real, mesmo assim continuam a usufruir da isenção do COFINS. Com razão ao meu ver, o Egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região (Fls. 117) ao ter sustentado que:
“As sociedades civis prestadoras de serviços relativos à profissão regulamentada, que perderem o direito à isenção do imposto de renda, por terem optado pela tributação real, não perdem sua qualidade de sociedade civil prestadora de serviços relativos à profissão regulamentada, e, assim, estão de acordo com o artigo 6º, inciso II, da lei Complementar nº 70, de 1991, isentas de Contribuição Social para Financiamento da Seguridade Social – COFINS.”
Por ocasião do julgamento deste precedente, salientou o eminente Juiz Relator, Tourinho Neto, no seu voto condutor do acórdão que:
“Se essas sociedades perdem o direito a isenção do imposto de renda, perderão a qualidade de sociedade civil prestadora de serviços relativos à profissão regulamentada? Evidentemente que não. A Lei Complementar nº 70 foi buscar no Decreto-lei nº 2.397/87 apenas a definição da sociedade que queria isentar nada tendo a ver com a incidência ou não do imposto de renda. Se, posteriormente, uma lei – a lei 8.383 de 1.991, permitiu que esse tipo de sociedade pudesse optar pela tributação real, perdendo, assim a isenção do imposto de renda, isto nada modifica o que dispôs a lei complementar nº 70. Atente-se que a Lei nº 8.383 é de 30 de dezembro de 1.991, e a lei Complementar nº 70 são da mesma data. Consequentemente, se conclui se a Lei Complementar nº 70 quisesse atentar para o que foi disposto na Lei nº 8.383 faria. Excepcionaria a sociedade civil prestadora de serviços relativos à profissão regulamentada não isenta do imposto de renda.’ (fls. 121). Dou provimento ao recurso para reformar o venerando acórdão recorrido e conceder a segurança.”
Diante disso, conforme brilhantemente exposto no voto supra transcrito, o que a Lei Complementar nº 70/91 fez foi buscar no Decreto 2.397/87 a definição da sociedade civil prestadora de serviços que queria contemplar com a mencionada isenção do seu art. 6º, não fazendo referência, em momento algum, sobre a condição de ser ela ou não contribuinte do Imposto de Renda.
Dessa forma, não se pode aceitar como devida a exigência decorrente do indigitado Parecer Normativo por faltar-lhe fundamento legal para imposição tributária e estar em desconformidade com o ordenamento jurídico, sendo que, para a utilização da mencionada isenção constante no texto da Lei Complementar em referência somente concorrem as seguintes condições em relação às sociedades civis:
– Seja a sociedade constituída exclusivamente por pessoas físicas domiciliadas no Brasil;
– Tenha por objetivo a prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão legalmente regulamentada;
– Esteja registrada no Registro de Pessoas Jurídicas.
Enquadrando-se nessas condições, inexiste a obrigatoriedade legal de pagamento da COFINS, sendo portanto devida a restituição dos valores indevidamente pagos até o mês de Abril de 1997, quando passou a vigorar a cobrança sob a égide do disposto no art. 56 da Lei 9.430/96.
4. Da Ilegalidade da Cobrança da COFINS instituída pela Lei 9.430/96:
A partir de maio de 1997, em face da edição da Lei 9.430/96, que em seu art. 56 determinava, conforme já citado, que as sociedades civis prestadoras de serviço passariam a contribuir para a Seguridade Social nos termos do disposto Lei Complementar nº 70/91, tentou-se criar uma “base legal” que permitisse a cobrança da indigitada Contribuição.
No entanto, cumpre destacar que o ordenamento jurídico brasileiro, adotando a teoria kelseniana de escalonamento das normas jurídicas, estabelece a chamada “Hierarquia normativa”, que pode ser representada, resumidamente, pela disposição dos diversos elementos normativos em forma piramidal, tendo em seu ápice a Constituição Federal, seguida pelos demais atos normativos.
Ocorre que uma das grandes questões doutrinárias que envolvem o sistema de hierarquia normativa diz respeito à posição da “Lei Complementar” em relação à “Lei Ordinária”, se aquela seria hierarquicamente superior esta ou não.
De fato, uma fatia da doutrina pátria entendia que à lei complementar somente era deferida uma certa gama de matérias específicas que deveriam ser tratadas sob a sua égide, não havendo portanto que se falar em superioridade hierárquica entre ela e as Leis Ordinárias e sim somente campos de competência distintos.
Entretanto, esse entendimento encontra-se há muito ultrapassado em nossa doutrina constitucionalista que, em face do procedimento especial dispensado pelo art. 69 da Lei Maior, reconhece a superioridade hierárquica da Lei Complementar em desfavor da Lei Ordinária, tendo sido firmado pelo renomado mestre J. Cretella Jr. que:
“Numa disposição hierárquica ou escalonada das regras jurídicas legais, diríamos que a lei complementar representa um ‘plus’ em relação à lei ordinária, e um ‘minus’, em relação à emenda constitucional.” (7).
Nesse mesmo sentido é a lição de Geraldo Ataliba, que assim preleciona:
“Abaixo das leis constitucionais, localizou as complementares, seguidas imediatamente pelas ordinárias. A hierarquia ideal corresponde a essa gradação. A principal conseqüência jurídica desta circunstância reside na superioridade da lei complementar sobre a ordinária. E esta gradação tem, em muitos casos, conseqüências também de caráter formal, como se verá. Consiste a superioridade formal da lei complementar – como em geral das normas jurídicas eminentes, em relação às que lhe são inferiores – na impossibilidade jurídica de a lei ordinária alterá-la ou revogá-la. Nula é, pois, a parte desta que contravenha disposição daquela.” (8).
Dessa forma, encontrando-se a Lei Complementar em posição hierarquicamente superior em relação às Leis Ordinárias, não pode em hipótese alguma ser por ela modificada ou revogada. Os dispositivos constantes na Lei Ordinária que estiverem incompatíveis com a Lei Complementar são nulos de pleno direito, não produzindo nenhum efeito no mundo jurídico.
Pois bem. Cumpre observar, após essas observações, que a indigitada Lei 9.430/96 encontra-se classificada na categoria das Leis Ordinárias, hierarquicamente inferior, portanto, à Lei Complementar nº 70/91, que instituiu a indigitada Contribuição, não podendo, portanto, alterá-la ou revogá-la.
Na verdade, o mandamento constante no art. 56 da Lei 9.430/96 é nulo, posto que incompatível com o ordenamento jurídico que lhe é superior, não sendo portanto, capaz de gerar a obrigatoriedade pretendida pelo legislador em impor a cobrança da COFINS.
Para que tal fosse possível, necessária seria a edição de uma nova Lei Complementar que arvorasse a revogação da isenção contida no art. 6º da LC 70/91, sendo portanto, conforme veementemente afirmado, completamente ineficaz a pretensão da indigitada cobrança.
Tal entendimento também foi objeto da lúcida observação do ilustre professor José Eduardo Queiroz Regina, em matéria publicada no Boletim IOB de Jurisprudência (nº 1, Ano 1997, p. 187), intitulado “Da Inconstitucionalidade da Exigência de COFINS das Sociedades Civis de Profissão Regulamentada”:
“Se o legislador complementar, ao instituir a COFINS, expressamente decidiu que essa contribuição não pode ser exigida das sociedades civis de profissão regulamentada, não propiciando fosse essa matéria tratada por lei ordinária, é inadmissível que, agora, seja essa disposição alterada através de mera lei ordinária, hierarquicamente inferior, especialmente porque referida lei traz disposições gerais, amplas e abrangentes relativamente a diversas matérias distintas, e que foi discutida e aprovada, a ‘toque de caixa’, para respeitar o princípio da anterioridade, motivo pelo qual tais matérias, por isso mesmo, passaram até despercebidas pelos legisladores ordinários, sem pois, a cautela e os requisitos exigidos para a discussão e aprovação de lei complementar. É pois indiscutível, nulo e ineficaz o art. 56, da lei nº 9.430/96, de 27.12.96, não podendo ser admitido em nosso Sistema Jurídico, motivo pelo qual as sociedades civis de profissão regulamentada têm o líquido e certo direito de não ser compelidas a recolher a indigitada Contribuição Social sobre o Faturamento – COFINS, da qual são isentas em decorrência do disposto no inciso II, do artigo 6º da Lei Complementar nº 70 de 30.12.91.”
Esse entendimento, somente a título de esclarecimento, já foi enfrentado pelo judiciário, tendo sido acolhido pelo Egrégio Tribunal Regional Federal da Quarta Região, no julgamento do recurso de apelação nº 94.04.50357-1, que proferiu a seguinte ementa, publicada no DJU em 07 de outubro de 1998, p. 377:
“PROCESSO CIVIL – PROCURAÇÃO – RECONHECIMENTO DE FIRMA – TRIBUTÁRIO – COFINS – SOCIEDADE CIVIL – ISENÇÃO – PARECER NORMATIVO – ILEGALIDADE – LEI ORDINÁRIA X LEI COMPLEMENTAR.
A exigência do reconhecimento de firma na procuração judicial ad judicia, constante da redação primitiva do CPC, foi cancelada pela Lei 8.952 de 13.12.94.
É ilegal o Parecer Normativo nº 03/94, emitido pelo Ministério da Fazenda, porque extrapola os limites da Lei Complementar nº 70/91, criando situação nova, na tentativa de revogar a isenção do Cofins dada às sociedades civis.
A Lei Ordinária nº 9.430/96 não tem o condão de modificar a lei complementar, pois não pode invadir o campo reservado a essa última.”
Do voto do relator, Min. Amir José Finocchiaro Sarti, acolhido à unanimidade por aquela corte, transcrevemos o seguinte teor:
“Não prospera o argumento de que a Lei 9.430/96 extinguiu a isenção prevista na Lei Complementar nº 70/91, pois uma lei ordinária, como é a Lei 9.430/96, não pode modificar lei complementar, que exige quorum especial para sua aprovação, ou seja, maioria absoluta (art. 69 da CF) e, justamente por isso, é hierarquicamente superior à lei ordinária.”
Diante disso, a instituição da obrigatoriedade de recolhimento da Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) contida no art. 56 da indigitada Lei 9.430/96 encontra-se eivada da inconstitucionalidade formal, não sendo portanto possível a sua exigência pelo referido diploma legal.
5. Conclusão:
A Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social fora instituída pela Lei Complementar nº 70/91, nos termos traçados pelo art. 195 da Constituição Federal, contemplando em seu art. 6º, II a isenção às sociedades civis de que trata o art. 1º do Decreto-lei nº 2.397/87, que por sua vez contemplava com a isenção do Imposto de Renda as sociedades civis prestadoras de serviço legalmente regulamentado, registradas no Registro Civil das pessoas jurídicas e composta exclusivamente por pessoas físicas domiciliadas no país.
Interpretando o referido dispositivo, o Coordenador Geral do Sistema de Tributação emitiu o parecer normativo de nº 03/94, onde entendia que somente as sociedades civis que não optassem por algum dos sistemas de tributação do Imposto de Renda dispostos no art. 2º da Lei 8.541/92 (lucro real ou presumido) é que poderiam usufruir da mencionada isenção.
Tal entendimento, no entanto, sofreu profunda repulsa pela doutrina tributária e pela jurisprudência nacional, que declararam que o dispositivo isentivo constante no inciso II do art. 6º da LC 70/91 fora apenas buscar no texto do art. 1º do Decreto-lei 2.397/87 o conceito de Sociedade Civil que pretendia contemplar, não fazendo nenhuma remissão ao fato de ser ela tributada ou não pelo Imposto de Renda.
Essa ilegalidade manteve-se até o mês de Abril de 1997, quando, após entrar em vigor os dispositivos da Lei 9.430/96, supostamente, a partir do mês de Maio daquele ano, passou-se a exigir a COFINS com fundamento no art. 56 daquele diploma legal, que declarava devido o pagamento.
No entanto, sendo norma de hierarquia inferior à Lei Complementa, a Lei 9.430/96 não poderia, como não pôde, alterar seus dispositivos, sendo portanto incompatível com o sistema tributário pátrio e inconstitucional a sua exigência.
Dessa forma, completamente inócua a pretensão estatal em exigir a COFINS das sociedades civis prestadoras de serviço regulamentado, formadas exclusivamente por profissionais residentes no Brasil e devidamente registradas no Registro de Pessoas Jurídicas (que são as condições previstas no art. 1º do Decreto-lei 2.397/87) em toda a história da instituição da exação, estando em total desacordo com os princípios norteadores do sistema tributário pátrio, devendo portanto ser declarada a ilegalidade de sua exigência e a inexistência de obrigatoriedade em recolhê-la, constituindo direito líquido e certo daquelas entidades a obtenção da repetição dos valores indevidamente pagos, dignificando o Estado Democrático de Direito e contemplando assim os princípios basilares da Constituição Cidadã como a mais perfeita forma de garantia dos direitos individuais, consubstanciada nos preceitos do nobilíssimo princípio da legalidade que com muita luta fora conquistado e reconhecido ao longo da história mundial.
Notas:
(1) FERRARI, Renato. Em Busca da Paz Tributária, Cia Melhoramentos, São Paulo, 1996, p. 44.
(2) Derrama. (dir. português) No antigo direito português assim se chamava o imposto lançado sobre todos para suprir gastos extraordinários. Imposto “derramado” sobre todos. (SOIBELMAN, Leib. “Enciclopédia do Advogado”, 4ª Edição, Rio – Estácio de Sá, Rio de Janeiro, 1983).
(3) “…Em 1808, com a ocupação de Portugal pelos frnaceses, D. João é obrigado a vir para o Brasil com toda a Corte portuguesa. Este fato acarreta novas e altas despesas para a Colônia. Para cobri-las, os impostos foram aumentados e com eles, as tensões coloniais. A insatisfação generalizou-se desde a alta aristocracia até as camadas mais populares, enquanto as idéias francesas circulavam, fermentando e impulsionando as manifestações antilusitanas. (COSTA, Luís César Amad. História do Brasil, Scipione, 4ª edição, São Paulo, 1992, p. 100).
(4) Ainda temos juízes em Berlim. Outras versões: “Sim, se não houvesse juízes em Berlim” ou “Ainda há juízes em Berlim”. Serve para exprimir a crença na força da justiça e origina-se da seguinte anedota: Frederico II o Grande (1712-1786), rei da Prússia, desejava comprar o moinho que o impedia de alargar o parque de Sans-Souci, mas o moleiro mantinha-se irredutível em não querer cedê-lo por nenhum preço. O rei deu-lhe a entender que podia forçá-lo à venda, recebendo então a resposta que ficou nos anais da história. (Op. Cit. 2).
(5) Parecer Normativo 03/94: “12 – Por conseguinte, a sociedade civil que optar por um dos regimes de tributação de que trata o art. 2º da Lei 8.541/92 (lucro real ou presumido) abdicando do regime de tributação previsto no art. 1º do Decreto-lei nº 2.397/87, será enquadrado como contribuinte do imposto de renda das pessoas jurídicas e, conforme definição dada pelo art. 1º da Lei Complementar 70/91, é sujeito passivo da Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS).” (apud Diego Galbinsk in “A COFINS das sociedades prestadoras de serviços profissionais legalmente regulamentados”, Informativo IOB, nº 20/99, p. 604).
(6) SILVA, José Afonso da. O Prefeito e o Município. 2ª edição, 1977, Fundação Prefeito Faria Lima, p. 157.
(7) Comentários à Constituição de 1988, Forense Universitária, 1991, Vol. V, p. 2.712.
(8) Lei Complementar na Constituição. RT 1971, p. 29.